O filme “Sotto Voce”, do diretor marroquino Kamal Kamal, abrirá a 10ª Mostra Mundo Árabe de Cinema nesta quarta-feira, dia 12, no Cinesesc, em São Paulo, como uma das produções da Sessão Panorama Árabe. Apresentando um diálogo entre cinema, história e música, “Sotto Voce”, inédito no Brasil, mostra a trajetória de um marroquino durante a Guerra da Independência da Argélia. Em entrevista ao ICArabe, o diretor Kamal Kamal conta como relatos da guerra permearam sua infância através das histórias contadas por sua mãe, fala da situação social dos países árabes e reflete sobre o papel do cinema nesse contexto. Leia a seguir a entrevista:
ICArabe- Como surgiu a ideia de filmar uma história sobre a Guerra de Independência da Argélia?
Kamal Kamal - Minha mãe é argelina. Ela era um resistente à guerra da Argélia. Desde a minha infância ela me contava histórias deste período: como ela cruzou as fronteiras de Tlemcen, através de montanhas nevadas, para a cidade de Berkane, em território marroquino, onde um campo de refugiados e condenados à morte à revelia na Argélia foi instalado. Eu entendi cedo que ela estava sofrendo os efeitos desta guerra. Ela estava sofrendo de dores de cabeça e muitos pesadelos frequentes, e se via uma cena de um filme de guerra na televisão, chorava a noite toda e nada poderia mudar isso. Quando criança, eu era fascinado por esta história e, especialmente, a história do homem europeu que perdera a perna e não podiam acabar com o sofrimento deste homem só porque ele era um cristão e que ele não seria um mártir: ele não tinha o direito ao Paraíso como um mártir muçulmano. Quando eu cresci, percebi o quanto a política utilizava o absurdo para chegar onde queria.
ICArabe - "Sotto Voce" apresenta um diálogo entre cinema, história e música, um dos temas da 10ª Mostra Mundo Árabe de Cinema. O senhor é um diretor de cinema e um compositor. Como vê a relação do cinema atual com outras artes, como música?
Kamal Kamal - O cinema é a sétima arte e abriga em seu templo as seis outras formas de arte que a precederam, a saber: o teatro, a música, a pintura, a dança, a escultura e a poesia. Assim, a música é um componente do cinema em geral. E como recebi uma formação musical desde a minha infância, acho muito mais fácil me expressar através da linguagem da música do que qualquer outra forma de arte. Sei também o grande poder da música para transmitir as emoções e comunicá-las a diferentes pessoas de todo o mundo.
ICArabe - Segundo o Centro de Cinematografia Marroquina (CCM), os telespectadores estão de volta às salas de cinema do país para ver filmes marroquinos. Em 2013, 60% dos ingressos vendidos foram para os filmes marroquinos e os primeiros quatro filmes no topo da bilheteria foram marroquinos. No plano internacional, o cinema do Marrocos foi representado em 141 festivais realizados em 71 países diferentes em 2013. A que o senhor atribui esse sucesso?
Kamal Kamal - Eu acredito que é uma decisão política que quer que o Marrocos, que é um país pequeno, mas muito aberto aos outros, deva fazer-se a conhecer para melhor existir na comunidade internacional. É por isso que criamos o fundo para as produções nacionais e, em seguida, o avanço sobre as receitas. É uma experiência que funciona cada vez melhor nesta comunidade chamada "southern lands" (terras do sul).
Devo também dizer que o Rei de Marrocos gosta de cinema e está fazendo o seu melhor para ajudar a indústria do cinema. Temos em Marrocos sete festivais de cinema, incluindo 68 festivais de cinema para filmes de estudantes, nos quais as crianças se divertem fazendo filmes.
ICArabe - Alguns pensadores políticos afirmam que, se quisermos realmente entender o que aconteceu no Iraque na década de 2000, por exemplo, devemos assistir ao filme "A Batalha de Argel". O senhor acredita que as últimas produções árabes conseguiram comunicar com o público no mundo árabe e em outros lugares sobre o que aconteceu na região?
Kamal Kamal - Não, eu não penso assim. O Cinema Árabe pode ter condenado ditadores árabes e a situação no mundo árabe, mas não conseguiu entender por que eles são assim (leia-se por que eles são ditadores). O Cinema Árabe sempre pregou o pan-arabismo para esconder grandes diferenças ideológicas, tribais, religiosas e étnicas numa região de vinte milhões de quilômetros quadrados. Fazer alguma diferença nas culturas, religiões e estilos de vida dos povos ou grupos étnicos -uma variedade enriquecedora - não seria da competência dos cineastas. Só agora entendemos que as ditaduras no mundo árabe eram uma necessidade para manter a paz em um mosaico de pessoas que não hesitariam em matar por sua herança ideológica de 1.500 anos. E é isso que está acontecendo agora.
ICArabe - Em seu ponto de vista, como o cinema impacta ou ajuda os momentos históricos que os países árabes têm vivido nos últimos anos?
Kamal Kamal - Por um lado, são raros os filmes que lidam com o assunto a sério, por causa da ignorância ou do medo de represálias em uma região pegando fogo. Por outro lado, recentemente, vi dois filmes sírios e um libanês que lidam com o assunto, mas todos defendem um ponto de vista de um grupo contra o outro. É mais um cinema de propaganda do que um cinema que defende os direitos humanos.
ICArabe - Como o senhor vê o momento social e político atual no mundo árabe? As esperanças da Primavera Árabe ainda resistem?
Kamal Kamal - As revoluções bem sucedidas são as revoluções que têm sido guiados por homens que têm um pensamento real e um programa político real assimilados e compreendidos pelo povo. O que está acontecendo no mundo árabe é mais um caos que uma primavera.
Há pessoas com raiva por razões econômicas e sociais e estão em completa ignorância sobre regras e mecanismos que orientam um país e os mecanismos que regem as relações entre este país com o mundo. Quando não sabemos para onde vamos, nós nos perdemos.
ICArabe - Como o senhor vê o diálogo que os filmes árabes estão estabelecendo com as produções latino-americanas? Vê algum elemento comum entre eles?
Kamal Kamal - Nós todos somos considerados países do sul e de fato temos um monte de coisas comuns. Nós quase sofremos dos mesmos males sociais e fazemos realizar a mesma luta existencial. Nossos cinemas sofrem com a falta de recursos e de visibilidade no mundo, exceto em festivais.
Eu acredito que um dia isto nos levará a conhecer um ao outro melhor para colaborar e melhor servir a humanidade, como servir ao nosso próprio cinema.
ICArabe – O senhor acompanha o cinema brasileiro? Conhece alguns de nossos filmes?
Kamal Kamal - Eu tento seguir todos os cinemas do mundo através de festivais ou através de DVDs. Tive o prazer de assistir a alguns filmes brasileiros de alta qualidade, com uma grande força cinematográfica, tais como: “Cidade de Deus”, “Central do Brasil”, “Pixote", "Favelas",... e muitos outros que me deram a esperança de que o “Cinema do Sul” um dia vai encontrar o seu lugar real no mundo.
ICArabe – O senhor está atualmente produzindo um novo filme? Poderia nos dizer o tema de seu novo trabalho?
Estou na preparação do meu próximo filme, sobre mulheres prisioneiras que descobrem um dia que, se elas estão na prisão é porque falharam com a sociedade. Elas decidem então liderar uma grande ação de arrependimento.