Curadoria

É pertinente, de início, colocarmo-nos frente ao conceito de “mundo árabe”, que nomeia o próprio recorte temático da Mostra, a fim de descobrirmos quais os modos pelos quais este conceito foi afetado pelas transformações dos últimos dez anos.

 

Mais do que um referencial geográfico e cultural, o conceito remete a uma noção de unidade que só sobrevive enquanto é capaz de responder aos permanentes desafios que lhe são lançados. Seria até possível imaginar algo em comum entre um processo de curadoria e as dinâmicas políticas de integração regional no cenário internacional: ambos se deparam com o desafio de buscar unidade no labirinto da multiplicidade.

 

Aqui podemos perceber o quão incisivo pode ser um acontecimento no campo da cultura no que diz respeito à sua capacidade de implodir conceitos. No decorrer de uma década, os filmes exibidos foram evidenciando todas as fissuras na suposta totalidade que essencializa identidades e amortece as diferenças.

 

A multiplicidade de olhares dos realizadores dos filmes, dos debatedores, dos participantes, permitiu que o conceito de “mundo árabe” ganhasse sentido pela riqueza de sua pluralidade, revelando-se como um verdadeiro espaço de encontros.

 

Os últimos dez anos não contextualizaram somente a introdução de novas temáticas (como as redes sociais virtuais) ou o retorno a certas discussões (sobre as várias práticas de deslocamento forçado). O período foi também palco de transformações importantes no processo de produção cinematográfica no mundo árabe, nas novas configurações e suas mesclas entre o fazer artístico e político e no baile constante da redefinição de ações da indústria e mercado.

 

A projeção do indivíduo como ator político perante o enfraquecimento e crise das instituições também escorre entre as rachaduras abertas que a potência da arte, o desafio da produção do comum e da coexistência podem ocupar. O fortalecimento de um cinema autoral, feito muitas vezes com poucos recursos, convoca-nos a sermos testemunhas de conflitos que se desdobram tanto no plano dos acontecimentos políticos, como no ventre do espaço doméstico, rico em significados. Mas com esse indivíduo, ator e autor, em contexto de crise institucional, desloca-se também a estabilidade das práticas de representação, tanto da representatividade política como dos limites da representação estética perante a violência extrema.

 

Assim, a compreensão do espaço de encontro do cinema com outras práticas artísticas é parte de um esforço para fugir da dualidade. Escapar do reducionismo. Não se trata de uma relação direta e explícita entre cinema e sociedade, mas de um entrelaçamento entre vários dispositivos artísticos que, conjuntamente, têm força para encarar a rugosidade do tempo histórico, de suas reentrâncias, das temporalidades não-cronológicas.

 

Os filmes expressam o desejo pela narrativa. Mesmo quando a experimentação desequilibra as formas convencionais de narrativa, as elaborações discursivas metamorfoseiam-se, mas não perdem a intensidade do desejo de inscrição na História.

 

A curadoria da presente edição da Mostra busca pavimentar, portanto, caminhos possíveis para esses encontros. Sugerir esquinas e cruzamentos entre o cinema e as outras expressões estéticas, como parte de um agenciamento entre a Arte e a Política, atiçando inquietudes que provoquem a imaginação a pensar as possibilidades de coexistência exigidas pelo mundo contemporâneo.

 

Geraldo Adriano G. de Campos

Diretor e Curador da “Mostra Mundo Árabe de Cinema”.